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Josefa Francisco (D. Josefa)

Chá da Terra

 

“Gente, não existe nada mais lindo e pleno do que viver. Por isso ainda quero fazer muitas rodas de chá”. (Josefa)

 

Josefa é uma mulher-semente. Por meio das conversas que animam as rodas de mulheres do Chá da Terra, ela se planta como guardiã de saberes ancestrais. Seu nome foi escolhido para homenagear a parteira da cidade – Palmeirópolis, no Tocantins. Décadas depois, Josefa mostraria ao mundo o dom de também fazer nascer – não seres humanos, mas hortaliças e ervas medicinais. Parafraseando o clássico da literatura infantil, nossa menina do dedo verde foi levada da vida de quintal para a selva de pedra. Não por querer, mas para seguir o sonho de todas as mães agriculturas de casar as filhas com os moços da cidade.

“Nasci e cresci em uma comunidade rural sem estrada de acesso, mas era uma vida sustentável. Meu pai viajava uma vez no ano, ia comprar sal e ferros para fazer enxadas. A gente fazia de tudo, desde plantar o algodão até costurar as roupas. Muitas vezes, o tecido do colchão era o mesmo do vestido. A gente levantava junto com o sol e minha mãe dava as responsabilidades: alguém ia pilar o arroz, outro ia no rio buscar peixe, outro ia para a roça colher vegetais. A vida era integrada à natureza e a gente era feliz assim: comia o que plantava, o que pescava e o que caçava. De medicina, só conhecia raizeira, parteira e benzedeira. Até os 16 anos, não sabia que existia médico nem hospital”. Josefa lembra de alguns saberes da raizeira que hoje chamamos de terapias integrativas, como a argiloterapia: “ela abria um buraco na terra e ali a gente se recuperava de quebraduras, de cólicas menstruais…”.

 

De volta às raízes

Josefa é casada com Antônio há 35 anos. Após se casarem, viveram em Anápolis em um acampamento sem terra ligado ao MSTTR. Em 2000, chegaram em São Sebastião. “Viemos para uma casa no Capão Comprido, em um terreno de 400 m². Plantei 200 variedades de medicinais e abri esse quintal para o público. Recebia muita mulher. Tinha mãe que ia para o posto de saúde só para tirar bicho de pé do filho. Gente, não precisa do posto de saúde para isso, deixa eu ensinar como tira. Ah, o dente de leite do menino está molinho e a mãe quer levar para o dentista. Vem cá, eu tiro. Ah, a menina está com cólica menstrual. Vamos cuidar. O menino tem catarro? Vamos curar essa catarreira. Eu fiz o que sei fazer e também aprendi muito com essas mulheres”.

Josefa passou, como ela conta, sob “o fio da espada da morte” duas vezes. Uma por acidente natural, aos 16 anos, quando foi atravessada por um pedaço de pau. Fez cirurgia e ficou em coma por oito meses. Na segunda vez, já casada e morando na cidade, ficou doente de tristeza por não se adaptar à vida urbana. A vergonha de não assumir seu verdadeiro ser virou um câncer, diagnosticado incurável. “Acredito que as doenças estão muito ligadas ao emocional. O médico me deu pouco tempo de vida, mas como ainda quero fazer mais uma coisinha nessa vida, de repente o Universo deu uma mexidinha no caldeirão e falou: então, volta! Voltei com liberdade e me sinto honrada com essas oportunidades”, diz Josefa, cheia de vida e saúde.

 

Curiosidade que cura

“Toda a vida fui curiosa e a minha mãe me ensinava muito. A família de meu marido, apesar de pobre, era tida como melhor porque era da cidade e tinha um estilo de vida completamente diferente do meu. A riqueza lá na roça é uma riqueza diferente. Aí essa menina chega da roça, casa com um homem da cidade, não se adapta e sofre discriminação: ah, ela é matuta, quer plantar roça, etc. Isso foi um pouco agressivo”, relata Josefa, fazendo-nos chegar até o diagnóstico crucial no Hospital de Base, em Brasília. O câncer estava evoluído e o médico disse que só restava voltar para casa e, literalmente, esperar a morte chegar. Mas não Josefa.

 

O bê-a-bá da autocura

“Ouvi aquilo e fiquei revoltada. A voz do médico ficou ressoando na cabeça. Isso não é verdade, sobrevivi ao pau que me atravessou e, por causa de um carocinho, falam que não tenho mais chance?! Disse a Antônio: quero ver minha mãe. Ele foi buscá-la em Tocantins e falei: mãe, quero plantar uma horta; se não puder quebrar esse quintal e plantar uma horta aqui, quero ir embora. Antônio é um marido maravilhoso, mãe, se ele quiser ir comigo, quero levar, mas se não puder plantar minha horta aqui, vou embora. Aqui não é o meu lugar. Antônio falou assim: eu quebro o quintal e faço horta. Então quebra, falei, e ele respondeu que quebrava depois. Não, se não quebrar agora, vou embora. Ele quebrou o cimento e começou a fazer a horta”.

 

A força de uma decisão

Um trecho do pensamento de Goethe (1749 – 1832), escritor e filósofo alemão, traduz bem esse movimento de D. Josefa: “(…)seja o que for que você faça ou sonhe fazer, comece. A audácia tem força, poder e magia. Comece agora”. A cena seguinte foi reunir os moradores da casa: a sogra, sua mãe, as sete cunhadas e uma irmã, além do marido. Josefa assustou a plateia com um discurso forte: “Elas acharam que era o delírio da morte quando falei: quero me apresentar para vocês”, lembra rindo. “Apresentei-me como uma mulher da terra que perdeu a vergonha de se assumir. Sabe por que estou doente? Porque ouvi, nos últimos anos, que ser da roça é ser do atraso. Pois se é assim, sou feliz sendo do atraso. Tenho certeza de que estou doente porque tive vergonha de ser quem sou”. Um silêncio gritou na sala.

 

Fora cimento

“E continuei: para ser quem sou preciso fazer umas mudanças aqui. Não quero televisão no quarto. Meu marido se endividou um tempão para ter duas TVs, sendo que não gosto de TV. Não gosto de cozinhar sem fogo, quero fogo de verdade. Não quero gastar dinheiro suado para comprar uma tal blusa roxa, que na época era o auge da moda. Minhas cunhadas trabalhavam de doméstica e queriam comprar a marca de leite da patroa, a blusa lilás da patroa, essas coisas. Continuei: não preciso comprar roupa, já tenho várias. Nem os sapatos que vocês me impõem. Por tudo isso, mãe, sou muito infeliz. Lá na roça, eu era feliz e a senhora me pôs para cá. Então, ou fico sendo o que sou, ou vou embora. Minha sogra e as cunhadas me acolheram, meu marido mais ainda”, conta Josefa.

Em dois meses, Josefa voltou ao hospital. “Entrei caminhando com meus pés e o médico perguntou se acessei alguma tecnologia revolucionária em saúde. Respondi: doutor, só deixei de ter vergonha de ser da roça, de ser matuta do meio do mato. A partir de hoje, quem quiser conversar comigo vai falar de chá, de abóbora, de quiabo – é disso que sei”, falou, resoluta, a mulher que quis contar sua experiência, começou a fazer roda de mulheres e criou o projeto Chá da Terra.

 

Xaropes, pomadas e tinturas

Fazer xaropes, pomadas e tinturas sempre foi uma prática familiar para Josefa, mas a vida urbana levou-a a pensar que estava errada. Hoje, a mesma vida urbana nomeia esse saber de manipulação das plantas medicinais. “Lembro bem do primeiro dia. Enterrei umas estacas no quintal, coloquei uma tábua em cima, fiz um chá e chamei as mulheres para a roda. Disse que queria escutá-las, saber de onde vinham. Uma veio do Piauí, outra do Maranhão, outra do Rio Grande. A maioria do Nordeste. Comecei a desenvolver esse atendimento com as mães, ensinando-as a plantar. Eu visitava as casas, a gente fazia os quintais, as oficinas de chás, plantava e distribuía, trocava mudas. O negócio cresceu e senti a necessidade de ter uma terrinha maior”.

 

Semeando leitura

Josefa admite que não lida muito bem “com esse lance de reforma agrária. Fui com o coração cheio de sonhos e esperança, mas era outra coisa. Pode ser que outros acampamentos sejam aquilo que pregam. O tempo que fiquei, fiz e aprendi muito. Reunia as mulheres, fazia os quintais medicinais e as rodas de partilha”. Josefa plantou outros tipos de sementes nesse lugar, como ensinar vinte pessoas a ler e escrever, sem nunca ter ido à escola. A maioria, nessas rodas, era analfabeta. Uma noite, um homem disse que seria muito feliz no dia em que não precisasse perguntar qual ônibus estava vindo. “Aquilo me tocou. Eu sei ler e escrever, tenho a grafia boa e sou consumidora de livros. Decidi ensiná-lo. Em noventa dias ele deu conta de ler o nome na barra do ônibus”.

 

Desafios e alegrias

Quando Josefa começou as rodas em São Sebastião, a medicina das plantas não era mais tão proibida como nos anos 1980. O maior desafio dessa vez, segundo ela, foi ter que enfrentar o machismo. “Toda vez que as mulheres se juntam, elas não falam só de chás, elas falam de outras questões. Alguns maridos diziam que eu estava inventando moda. Acontece que, quando se trabalha a saúde da mulher, ela aprende a se cuidar, a ter mais autoestima e chega em casa mudada, mais feliz e dona de si, sabendo dizer alguns nãos…isso incomodou marido dominador. O que se espera da mulher é que ela cuide do marido, da casa, de tudo e todos, menos dela. Quando você diz para essa mulher que ela é o ser mais importante da face da terra, ah, minha filha, isso vira um problema, com maridos e igrejas também”.

“A alegria que brota dos plantios é o que fica”, diz ela, lembrando que tudo começou mais forte no acampamento: “O lugar ficou mais florido, com as mulheres mais felizes. Eu dizia que até podia receber qualquer xícara para o chá, mas elas tinham que usar a melhor. Vivemos bons dias e saí de lá com dor no coração, mas tinha que trabalhar essa questão da terra. Faz três anos que a gente encontrou esse lugarzinho aqui, no final do Morro da Cruz, na chácara Santa Terezinha”.

 

Mais respeito

A simplicidade, o respeito ao território e à individualidade de cada ser são os pilares desse projeto. “Acho que o respeito é o grande segredo, pois se você respeita a si mesmo, também saberá respeitar o outro e a terra que pisa”, diz Josefa, concluindo que o território só é território se tiver pessoas. “Tem que ter o povo. Não concordo que exista o certo ou o errado, nesse ponto eu sou rebelde. Cada um tem a sua felicidade”. Como agente de transformação de muitos homens, mulheres e adolescentes, ela admite que a maior transformação aconteceu dentro dela: “A mulher com vergonha de ser da roça mudou completamente, a ponto de envelhecer com saúde. Encontrar tantas mulheres parecidas comigo foi tão forte e curativo que me libertei de todas as dores”.
Menos cimento, mais verdinho

Realizar as rodas de chá é a forma que Josefa achou de dizer ao mundo que há jeito para tudo. “Claro que ter verba é importante, mas se não tiver, a gente faz a roda do mesmo jeito. Esse é o meu maior sonho: poder dizer o quanto é bom promover saúde tomando chá da terra e fazer coisas que o dinheiro não paga”, finaliza Josefa, entre uma xícara e outra. Sempre a melhor, claro!

Chá da Terra

Atividade principal: Agricultura sustentável com plantas medicinais, oficinas sobre o uso das ervas e degustação de chás.

Idealizadora: Josefa Francisco Gomes Ataides 

Endereço: Chácara Santa Terezinha, n°18, Rural Leste. Morro da Cruz

Email: joataides@hotmail.com

Material extra: Portfólio